Inglaterra, 1813
Era uma vez, uma lady conhecida por sua postura respeitável e atitudes inquestionáveis. Exemplo de retidão e decoro, com vinte e poucos anos, percebeu que a desigualdade entre homens e mulheres incomodava mais do que os sapatos que usava. Era, inclusive, bem mais dolorida do que um alfinete esquecido na cintura.
Certa noite, uma decisão audaciosa e arriscada foi tomada...
— Existe algum clube de senhoras onde eu possa jogar, dançar
e rir bastante? — ela perguntou ao condutor de sua carruagem, depois de
pedir-lhe para que parasse o veículo a caminho de casa quando voltava de um
baile.
O homem arregalou os olhos e digeriu a pergunta, encarando a
filha mais velha do duque de Greenville com espanto e desconfiança. Ela
procurava uma casa de jogos feminina? Mesmo certo de haver entendido
corretamente — inteligência era algo que ele sabia que tinha —, só pôde
gaguejar.
— Co-como?
A bendita aprumou a postura e apertou as mãos à frente do
corpo. Não estava nervosa, para espanto dele, que há muito já convivia com a
incômoda sensação de ter sido enfeitiçado por aquela mulher tão distante de sua
classe social.
— Eu quero saber se há algum lugar onde eu possa me
divertir.
Ele limpou a garganta. Já havia conseguido organizar os
pensamentos.
— Casas de chá. Eu posso levá-la amanhã à tarde, se assim
desejar, e...
— À noite. Quero aproveitar a noite, depois que meus irmãos e meu pai dormirem, de preferência, e
sem acompanhante, logicamente. — Fez um gesto com a cabeça apontando para a
dama adormecida no interior da carruagem. — Um lugar onde eu não precise ser a
filha do duque.
Isto era impossível,
ele quis dizer. Se houvesse um único lugar no mundo onde ela não fosse a filha
de um duque, o condutor não hesitaria em acompanhá-la. Tudo o que ele queria
é que ela não fosse uma lady.
Mas, para seu desespero, mesmo que se mudasse para a lua, ela
continuaria sendo uma dama. Tudo nela trazia a certeza de pertencer à alta nobreza,
bastante confortável naquele papel que vinha desempenhando por toda a vida. Era
segura de si, da postura à voz, passando pela maneira como pronunciava o próprio
nome e pela forma como não se intimidava.
O homem limitou-se a responder laconicamente.
— Não.
Como era de se esperar de quem viveu sempre com tudo o que
quis, a bendita decidiu que ela mesma criaria a tal casa de diversões. Ele
engoliu em seco, sentiu a respiração prender no pulmão e as palavras sumirem da
cabeça. Foi nesse instante que o condutor percebeu que aquela dama era a
sua sentença de morte. Ele jamais poderia negar nada a ela. Tampouco permitiria
que qualquer pessoa o fizesse.
E, o pior de tudo, daria a vida por ela sem nem pensar duas
vezes.
Dias depois, ele havia encontrado um lugar conforme as
exigências dela. Bom, mais ou menos. Afinal, ele se considerava um homem
inteligente, como já foi dito, e pretendia tirar da cabeça da dama a ideia de
se arriscar daquela forma. Mais do que isso: ele sentia, em cada batida de seu
coração, que precisava protegê-la, mesmo que fosse de si mesma.
Ao longo do caminho até o local, entretanto, seu peito foi
se enchendo de culpa. A cada vez que roubava uma visão de dentro da carruagem,
pela janela que havia atrás de si, ele se arrependia um pouco mais de não ter
se dedicado a encontrar algo que a atendesse tanto quanto se dedicou para
encontrar algo que a decepcionasse.
Cada sorriso, cada suspiro, cada brilho diferente que ele
notava nas feições delicadas e belíssimas repercutia na sua masculinidade, no
seu coração, na força superior que o impelia a protegê-la a qualquer custo.
Não, não... ela não precisava ser protegida. Precisava
alongar suas asas, voar entre risadas largas e a leveza da felicidade genuína. Aquela
dama reluzia como todas as estrelas do céu, como o sol do verão. E merecia sorrir
e ser feliz todos os segundos da vida.
*
Havia musgo subindo pelas paredes e flores multicoloridas
discretas enfeitando a folhagem verde, cobrindo janelas e enfraquecendo ainda
mais a construção. A porta, de madeira grossa, ostentava uma bela aldrava que,
entretanto, havia sido dominada por zinabre. O que outrora certamente fora o
caminho de passagem de elegantes carruagens, naquele momento, sumia entre
pedregulhos, provavelmente caídos das paredes do lugar.
Estava perigosamente despencando.
— Bom, foi só o que pude arrumar. Creio que não atende, não
é mesmo? Podemos partir, então?
Ela encarou-o e levantou uma sobrancelha. Sorrindo.
— Oras, senhor Jonas, não achou mesmo que eu só tinha aquela verba? Achou? Não sou
tola, meu caro. Tenho reservas.
Ela estava notoriamente animada com aquilo. E o condutor resistiu em demonstrar o alívio e afogar a
culpa.
— O endereço é bem bonito, não acha? — a dama seguiu
falando, brincando com as palavras na língua elegante da nobreza e despertando
o corpo dele para incontáveis possibilidades: — Blossom Alley. Fácil,
simples, sonoro e delicado — sorriu para ele, que desviou os olhos para não
fraquejar perante aquela que havia dominado seus sonhos mais profanos.
Ela era o verdadeiro blossom. Ela florescia
a cada inspiração.
Instantes depois, um homem enorme vestido em roupas
diferentes de todas as comumente usadas na Inglaterra apareceu saindo do lugar.
Alto e forte, usava um lenço largo de algodão com fios dourados ao redor do
pescoço, que muito lembrava uma echarpe, mas que seguia enrolando-se sobre a
cabeça, cobrindo os cabelos curtos. Um
shemagh, a dama pensou,
remetendo os pensamentos às ilustrações de alguns livros da biblioteca de seu
pai.
Os dois homens apertaram as mãos.
— Vejo que trouxe a dama que pretende comprar a casa. —
Virando-se para ela, sorriu. — Como vai, senhora...
— Ela vai bem — o cocheiro apressou-se em responder. — Não
precisa saber o nome dela. Basta que lide comigo. Ela vai olhar o lugar
enquanto nós dois conversamos sobre os detalhes. — Dito isto, virou-se para a
dama e disse o nome do homem enorme, sem mencionar o dela para ele.
Mas tolo era ele de acreditar que ela ficaria calada.
Com graciosidade, a dama ofereceu a mão já sem as luvas ao
homem. O condutor, assumindo tons de um vermelho ocre enraivecido, rosnou
entredentes:
— Não precisa confiar tanto... — Ele não sabia direito se
era cautela, medo ou o mais visceral ciúme, aquilo que sentia.
E a bendita, logicamente, se apresentou. Com todas as letras
muito bem trabalhadas no inglês mais perfeito que ele já ouviu, disse seu nome,
sobrenome, o título do pai e tudo mais que o outro não deveria saber.
Enquanto se familiarizavam com a propriedade, as ideias da
dama foram sendo ouvidas com atenção pelos dois homens, encantados pelo canto
da sereia e cada vez mais embebidos pela liberdade sugerida.
— Sócios, o que acham? — ela propôs.
Igualdade. Talvez fosse um
sonho ainda mais impossível do que a liberdade. Ainda assim, por aquela mulher,
ele ousaria sonhar.
O clube foi tomando forma na conversa dos três — tão
obviamente diferentes entre si que alcançavam o equilíbrio perfeito.
Um grande salão com piano, mesas de carteado, uma saleta com
alguns poucos livros, um bar e cômodos que poderiam ser usados para abrigar
damas em viagem, eventualmente, se a ideia inicial não fosse bem-sucedida...
Tudo preparado para que as mulheres pudessem se divertir.
Alguns pontos foram assumidos como regras:
(a)
Máscaras, para que as damas pudessem falar mais
livremente.
(b)
Sem nomes, para que os segredos fossem
preservados.
— E como faremos com os lordes?
— Não serão permitidos no clube. É um local para damas,
conforme acordamos.
— Não acordamos — ela retrucou.
— Pois bem. Acordaremos agora — o homem rosnou.
— E se elas quiserem dançar?
— Dançam umas com as outras — ele deu de ombros como se
aquela explicação pudesse encerrar o assunto.
— Acho que o senhor mesmo poderia selecionar os lordes. Eles aparecerão,
certamente, e caberá a você dizer quem entra e quem não entra.
— Não sou qualificado para isso.
— Bom, dinheiro, então. Os lordes que pagarem sua filiação poderão entrar. Podemos cobrar
o mesmo que o Almack´s. Sem ônus para as damas, a um custo para os lordes. O
que acham?
— Que parece uma casa de vida fácil — ele rugiu, bastante
irritado com a situação.
— Eu entendi sua referência, ainda que não veja qualquer facilidade naquela vida — comentou o
outro.
— Se o critério será dinheiro, acredito que apenas lordes
decrépitos e herdeiros ricos comparecerão. Estes, eu já encontro nos saraus de
quarta-feira.
Naquele instante, preparando a lista na cabeça, o condutor
decidiu que os mataria um a um. Enfim, adiou os planos sanguinários e voltou a
prestar atenção no que discutiam.
— Limitaremos as filiações de homens. Um pequeno número
e....
Mais uma regra nasceu:
(c)
Homens ficarão adstritos ao salão de baile, a
não ser que...
— E se uma dama em particular quiser pernoitar com um lorde
em particular?
— Que faça isso na própria casa — respondeu o condutor.
— E onde fica a liberdade das damas? Onde fica o direito de
escolha, de direção, de ação? Elas podem escolher. E se quiserem deitar com um certo lorde ou cavalheiro? Elas precisam
saber que têm opções aqui. Precisam saber que poderão confiar na nossa
discrição.
Ele suspirou, mas seus pensamentos flutuaram para um futuro impossível,
para o momento em que ela quisesse se deitar com alguém como ele em um
dos quartos. Não, não como ele. Ele.
A discussão dos dois era observada de perto pelo outro homem
que eventualmente interrompia com a própria opinião sem deixar de rir
discretamente.
— Pouquíssimos cômodos. Um ou dois, no máximo. Do contrário,
se tornará uma casa de perdição.
— Elas não se perderão. A ideia é se
encontrarem, se descobrirem. Mas, de toda sorte, você há de convir que não
haverá pagamento pela noite. — ela
sorriu e piscou um olho. — Não é este o pressuposto de uma casa de perdição?
Ele apertou as mãos em pulso firme, enterrando as unhas nas
palmas para atrair a própria atenção a outra dor que não a do coração.
Semanas depois, convites para um seleto grupo de damas —
dentre nobres e comuns — começaram a ser discretamente distribuídos em um
envelope lacrado pelas mãos de um jovem mensageiro, que recebera a ordem de
entregar diretamente aos nomes da lista, sem intermediários.
Nenhum homem recebeu o convite. Deveriam descobrir o clube sozinhos.
O sinete carimbado na cera mostrava duas chaves cruzadas.
Quando chegavam ao local, um cadeado acobreado de coração, precisamente encrustado na madeira da porta, sinalizava a confiança de que tudo, daquele ponto em diante, seria secreto — inclusive os desenhos feitos a carvão pela jovem dama, que decoravam as paredes com cenas sensuais extraídas de um famoso livro indiano.
*
Você deve estar se perguntando os nomes deles, não é?
A dama em questão era Marcelle Thinnew, filha de um duque
extremamente conservador, o duque de Greenville. Pai de sete filhos, ficou
viúvo quando a caçula, Claire, nasceu. A primogênita criou os seis irmãos mais
novos.
O condutor também era o cocheiro da família, e chamava-se
Jonas Cooper. Como era de se supor dessa narrativa, contrariando todas as
regras da sociedade e abraçando todas as regras do romance, eles se apaixonaram
e se uniram. Discretamente.
Jonas se dedicou com afinco a fazer Marcelle feliz. Havia
brigas, porque encontravam a paz nos braços um do outro. Havia sacrifícios,
porque as flores mais fortes têm espinhos. Acima de tudo, havia um amor
transparente e bem fundamentado.
Nunca tiveram filhos, porque assim decidiram viver. Envelheceram
lado a lado, cuidando de cavalos e fazendo amor sobre os desenhos e pinturas
feitos por ela.
O outro homem era Amin, duque de Villers-Dufau, e ele se casou
com uma das irmãs de Marcelle, Juliette, dama atormentada pelo casamento frustrado
com um lorde cretino. Amin assumiu a filha de Juliette, Laura, e juntos,
tiveram um menino, Brunei.
Laura se casou com Charles Thibald, o visconde de
Linderpool. Juntos, tiveram quatro meninos e uma menina.
Laura assumiu a Casa das Senhoras Distintas quando a tia
favorita faleceu.
Brunei se casou com a prima, Pollyana Arys, filha do duque
de Spencershire. Tiveram três filhos homens.
Tudo isso foi registrado em livros
e árvores genealógicas longas e complexas.
Até
hoje.