Pedaços de um caderno manchado de vinho - Charles Bukowski


 

Domingo de repost vem com um Bukowski. Publicada originalmente em fevereiro de 2016, essa resenha me fez querer reler o pocket.

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Sou o tipo de pessoa que senta pra ver um filme e presta atenção no que os personagens estão lendo. Mais do que isso: depois de ver o filme, resolve ler todos os volumes da série do filme. Estava, então, sem nenhum objetivo aparentemente maligno, vendo "Dezesseis Luas" (sim, eu li todas as "luas" da série - nem vale a pena resenhar) quando, em uma demonstração de inteligência entre os protagonistas, resolvem mencionar Bukowski. E lá fui eu atrás do tal camarada....
Charles Bukowski (1920 - 1994) foi um artista alemão famoso por seus temas polêmicos - álcool, mulheres e disgressões. Discípulo de Nietzsche e Dostoiévski, muito de seu trabalho é sombrio e meditativo. Em seus mais de 45 livros, muitos resultado de busca pelos textos dispersos em jornais independentes e periódicos literários, seus romances têm destaque - "Factótum", "Mulheres", "Cartas na Rua" e outros. Ah, sim! E poemas... Muitos poemas...
O presente livro, a despeito de pocket, não é simples. São vários contos do escritor (cerca de 30 e poucos) regados de palavrões e situações ordinárias, extraordinariamente contadas com palavras e ironia ímpares.
Nessa primeira resenha, vou tratar de "As consequências de uma longa carta de rejeição", "20 tanques de Kasseldown" e "Difícil sem música", os três primeiros textos do pequeno grande livro.

1 - As consequências de uma longa carta de rejeição
O texto retrata o momento na vida de um autor - provavelmente o próprio Bukowski - no qual, recebe uma carta de rejeição com motivos bem claros. As ideias do conto giravam em torno de boemia, prostitutas bem faladas e bebida - temas elementares na obra do autor.
O escritor rejeitado resolve voltar para casa e presencia dois amigos, embriagados, jogando com um desconhecido, o qual acreditou ser o próprio redator da carta de rejeição. Com a confusão instalada pela bebedeira, o personagem convida o homem estranho para conversarem em outro lugar. Como era tarde, não encontraram um restaurante, então o levou para a casa da prostituta Millie.
Apaixonada pelo escritor, Millie se propõe a "dar um jeito" do homem publicar os contos do escritor. Neste momento, o narrador ironiza a condição dos editores:
"- Não, Millie, você não está entendendo. Editores não são como homens de negócios cansados. Editores têm escrúpulos.
- Escrúpulos?
- Escrúpulos.
[...]
- Conheço bem esse negócio de escrúpulos! Não se preocupe com escrúpulos! Deixa comigo, garotão, vou fazer ele publicar todos os seus contos!"
Depois de dar por certa a publicação, Millie se retirou. Foi quando o homem revelou ser quem realmente era: representante de uma seguradora.
Terminando o texto de forma tão inesperada, Bukowski descreve-se como uma pessoa tomada por vasta depressão, meditações infrutíferas e desejos reprimidos.

2 - 20 tanques de Kasseldown
Com a história de um prisioneiro em sua cela no último dia antes da execução, a pequena crônica faz o leitor "entrar na cela" junto ao personagem.
Agraciado apenas com uma garrafa uísque, bebe a mesma até a última gota. Durante as goladas, percebe que sua vida era como a da barata próxima a ele, a qual ele mesmo tinha matado. Ocupado com pensamentos em amenidades, até mesmo com a leitura do rótulo da garrafa e a forma como a coloca no chão, o que o autor pretende é dissecar o último dia, quando nenhum outro pensamento fará diferença, quando não convirá mais pensar em suas paixões.
"Mas foque no presente, pensou, nunca deixe a paixão deformar o momento. A paixão, disforme, é um sinal de inferioridade!", afirma, à beira de uma crise estérica que lhe faz rir "um riso quase louco".
O finalié uma profunda meditação sobre a condição humana. Merece ser lido com olhos críticos e atentos.

3 - Difícil sem música
O texto conta a estória de um momento. Um homem chega à casa e sua senhoria lhe informa que, atendendo ao anúncio, havia freiras em seu quarto.
A conversa entre o homem e as freiras é mais um esclarecimento sobre os próprios pensamentos de Bukowski sobre música, sobre a forma como a música se revela despretensiosamente pelos ouvidos do ouvinte. "Toda a potência das variações, das notas em contraponto, deslizando com frescor de modo inacreditável na mente".
Em paralelo, fala da delicadeza das melodias dos compositores como Mozart, Chopin e Handel que, tendo composto com maestria a forma como as notas combinariam entre si, qualquer erro em sua execução macularia a peça em sua totalidade, quebrando sua harmonia e, por assim dizer, sua magia.
Por fim, vende os discos às freiras por um valor que, em um insight causado por suas próprias palavras, é inferior à qualidade das obras.
A obra de Bukowski não é simples de ser resenhada e me sinto audaciosa com esta tentativa. Foi um desafio. É profunda, forte e feroz, merecendo ser lida com cada entrelinha bem estudada. Esses contos não são diferentes. De cunho bastante meditativo, devem ser analisadas um a um, degustados e repensados por si. A leitura exige meditação e introspecção, senso crítico e analítico.
É um livro que precisa ser constantemente relido.