Canto negro - Ivan V. Levy


Mais um repost de 2016 - e, pelo que li, deu vontade de reler agora, em 2024, para ver o que eu acharia sob um novo olhar...
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Quando começo a ler um livro, costumo usar bloco e caneta para anotar os pontos que considero principais. A primeira anotação que fiz de "Canto Negro" foi "Basileu - vítima".
As cenas que me incomodam são narradas com sutileza e não com minú
cias psicopatológicas. Todavia, desde logo adianto que não é um livro leve.
Nunca tive problemas com histórias de terror (porque a fantasia sempre me soou como um deboche da realidade e eu termino procurando as mensagens escondidas), mas não creio que esse seja o caso, a despeito do que diz no site da Hoo.
"Canto Negro" não é um livro linear. Ambientado na Itália (renascentista, ainda que não haja grandes menções a isso), o livro envolve 4 personagens principais (Basileu, Prósper, o Conde e Castino).
Confesso que as alternâncias entre presente e passado acabam exageradas em momentos muito "explicativos", mas jamais permitem ao leitor adivinhar o final - e eu não vou dar spoiler.
Tive uma primeira impressão - pela narrativa confusa de uma cena de exorcismo e pela decepção com um texto sem ritmo (detalhes demais de lugares) - que me levou a pensar em "dinheiro jogado fora de novo". Mas me surpreendi. Quando o bandaid que abafa a violência hipócrita do interior de alguns "seminários" é arrancado, o livro ganha fôlego e dinamismo.
Em muitos momentos, é possível sentir raiva e pena do mesmo personagem (exceto o Conde, que é maniqueísta - um pecado, com o perdão do trocadilho, em um obra tão preocupada em traçar personagens complexos). O homossexualismo inicialmente velado e a violência da imposição são a principal marca de um livro que tem apenas uma personagem insignificante feminina. As relações quase incestuosas ("irmãos" de fé) são narradas com sutileza e os personagens se formam e transformam ao longo do texto, deixando ao leitor o direito de escolher sua vítima.
A leitura não é complexa e não exige relidas, mas precisei pensar bastante na construção de Basileu e Prósper, bem como a humanidade contraditória de Castino. Eu queria escolher um lado, mas a vida não é apenas bem e mal.
Muitas são as mensagens subliminares do texto - da vergonha da vítima ao orgulho do agressor, da omissão que reforça a atitude às atitudes que reforçam a omissão, dos paradoxos humanos às nuances de um demônio atormentado. Se há arrependimento e perdão ou mera encenação, cada um irá decidir. E isso é o que tornou o livro mais interessante para mim.
Fiquei tentada a pensar na relação de culpa que firmamos conosco mesmo, no quanto o demônio está em nós mesmos e, com isso, no quanto podemos nos amar. Ainda, o quanto o nosso demônio consciente/inconsciente pode nos levar a "ceder" a outrem nossa liberdade e no quanto é importante tomá-la de volta.
Vale a leitura - e agradeço à minha querida amiga Lilian pela sugestão.
Ivan V. Levy é um autor pouco conhecido, nascido em 1973 e com um pé no oculto/sobrenatural.
O hábito de ler nasceu na minha vida muito cedo. Aos poucos, fui descobrindo do que gosto e do que não gosto. Não gosto de realidade nua e crua, não gosto de filmes com violência sexual e não gosto de crianças sofrendo. Mas aprecio uma obra complexa.